domingo, 14 de junho de 2015

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                                         Uma volta pelo Alentejo

No início do ano, o New York Times elegeu-o como um dos 52 sítios a visitar. O britânico Guardian batizou-o de "a nova Toscânia". A National Geographic incluiu-o numa lista de 21 locais a não perder. Porque é que o Alentejo anda nas bocas do mundo? Fingindo que não sabemos, fomos passear por ali 


A TASCA 
Lisboa desaparecera dos retrovisores há meia hora quando os sobreiros começam a invadir os pinhais. É o Alentejo a mostrar-se como se a natureza reconhecesse ténues fronteiras humanas. Com a placa a anunciar Vendas Novas, capital da bifana, e o estômago a marcar a hora de almoço, estacionamos junto a um café à beira da estrada, convencidos pelo cartaz vermelho à porta. "Takinhos café-bar: sopa + bifana + bebida + café = €4,5" Sentamo-nos numa das duas mesas cá fora, que abanam com a passagem de camiões cheios de leite, farinha, combustíveis. Carlos Dias, 56 anos, um homem bem alimentado e de vistosa bigodaça, traz o manjar. Uma reconfortante sopa de feijão e hortaliça, uma imperial e uma carcaça com uma fina fatia de lombo de porco pincelada a manteiga de alho. Carlos, um lisboeta que trabalhava como vendedor quando conheceu a futura mulher ao passar por aqui, no final dos anos 80, vai contando a história das bifanas locais entre penáltis de tinto. "Nasceram no café Boavista, do António Vitorino, um ex-emigrante em França, muito antes do 25 de Abril. Mas era uma coisa pequena, só para camionistas.
O Manel Cardante é que transformou aquilo. Foi com ele que aprendi a fazê-las." E há um segredo, diz Carlos, péssimo a guardar segredos. "No talho, pede bifanas e dão-lhe da perna. Mas as de Vendas Novas. [piscadela de olho] são do lombo!"
A HISTÓRIA 
A paisagem que abraça a Nacional 4 muda definitivamente a caminho de Montemor-o-Novo. O cenário indefinido transforma-se em planícies onduladas, de um amarelo seco polvilhado pelas manchas verdes das azinheiras, com catadupas de ninhos de cegonhas nos postes de eletricidade e charcas esporádicas. Atravessamos aldeias fartas em bancos ocupados por gente que descansa sem estar cansada, à espera que o dia acabe e que venha outro. 
Antes de a estrada se acercar de Évora, um desvio à direita seguido de quatro quilómetros de terra picada aponta ao Cromeleque dos Almendres. Dois turistas que falam alemão acabam de abandonar o aglomerado de quase cem menires, de um a dois metros de altura, dispostos numa ladeira suave virada a leste. Presume-se que, há sete mil anos, quando foram talhadas e erguidas, as pedras tenham tido um significado religioso, mas pouco se sabe. O mistério é a sacralidade que lhes resta. 
Rumamos a Evoramonte. Subimos a rua principal abafados pelo calor e pelo silêncio de uma aldeia árida de almas. Lá no cimo, reina o peculiar castelo, iniciado ainda por Afonso Henriques e com uma reconstrução após o terramoto de 1531, assinada por Francisco de Arruda, o desenhador da Torre de Belém. Mas o ponto alto de Evoramonte é uma casa branca igual às outras, não fosse a placa por cima do número 41: "EM 26 DE MAIO DE 1834 NESTA CASA DE JOAQUIM ANTONIO SARMAGO FOI ASSIGNADA A CONVENÇAO DE EVORAMONTE QUE RESTABELECEU A PAZ EM PORTUGAL". Aqui terminou a única guerra civil portuguesa. 

O TERRAÇO 
Estremoz. Uma ponte levadiça dá acesso à cidadela, dominada pela torre de menagem em mármore, com 27 metros de altura, erguida no século XIII. É um dos poucos edifícios que sobreviveram à explosão do paiol, provocado pelo exército de Napoleão no início do século XIX. Acompanharam-no na fortuna o Paço Real, onde a rainha Santa Isabel morreu, o Paço da Audiência (agora uma galeria de arte) e a prisão, há nove anos convertida no restaurante A Cadeia Quinhentista por João Simões, 53 anos, cabelos brancos e de melena rebelde. "Isto no piso de baixo era para homens e, no de cima, para mulheres. A solitária é hoje a cozinha", guia--nos. "Aqui à frente, um nobre que prestara vassalagem a Filipe III mandou construir uma capela, para que, caso fosse preso [por ordem de D. João IV, o Restaurador], pudesse continuar a assistir à missa." Durante boa parte da sua existência, entre o século XVI e 1970, a prisão não tinha guardas prisionais. Uma família de carcereiros passava a carreira de pais para filhos, em pena mais que perpétua hereditária. 
Numa janela do andar térreo, ainda se nota a marca de uma das últimas fugas: na década de 40, o prisioneiro Pardal, condenado por andar aos pássaros, limou as grades e escapuliu-se; dias mais tarde, esfomeado, bateu à porta da prisão para se entregar. A vista do topo do restaurante não deslumbra menos que a sua biografia. O terraço vigia a cidadela, a cidade e os campos agrícolas que a rodeiam, enquadrados pela vizinha serra d'Ossa e pela mais longínqua serra de São Mamede. "Temos tudo para ser a Toscânia, ou a Provença portuguesa", jura João Simões, a apontar para a paisagem aos seus pés. "Mas é difícil fazer coisas no Alentejo. Os estrangeiros é que já nos vão descobrindo. Veio cá um jornalista inglês, começaram a aparecer ingleses; um blogger canadiano, vieram canadianos."  

A CIDADE 
Cai a tarde quando a serra de São Mamede se agiganta, com Portalegre nela empoleirada. 
A capital de distrito é a mais despretensiosa entre as 18 em Portugal com os seus 15 mil habitantes, nem sequer é a maior cidade da região que administra (Elvas tem mais população); exibe portas abertas pelas ruelas que serpenteiam em direção ao castelo, como numa aldeia; o cheiro convidativo de carne a ser cozinhada espalha-se por aqui e por ali; qualquer canto com três mesas perfaz uma esplanada, aproveitada para encontros de fim de dia entre os jovens; e a própria serra (o ponto mais alto do País a sul do Tejo), serve de pista de jogging aos portalegrenses. 

Infletimos para sul, já com o sol à altura do ombro direito. Passamos pelo elegante e solitário Castelo de Terena, por uma terra chamada Sete Casinhas, por um homem de preto que pastoreia um rebanho de mãos atrás das costas. O pôr do Sol e uma tempestade distante vestem o céu de violeta. A noite nasce morna e húmida. 
A imponência de Monsaraz ufana-se. 
O RESTAURANTE 
Às dez da noite, a Taverna Os Templários é uma das poucas provas de vida dentro das muralhas. Com dificuldade, ignoramos o chambão com arroz de passas e o borrego assado no forno. Mas o prato de enchidos e a sopa de cação, aveludada, com uma generosa posta alva de peixe afogada em coentros, cumprem com distinção o seu papel.
"Comprei esta casa ainda sem saber bem o que fazer dela", recorda Júlio Valido, 51 anos, um homem da terra que só saiu do Alentejo durante uma breve aventura, aos 19 anos, na Suíça. "Decidi-me pelo restaurante, mas estava cheio de medo. Nessa altura, há dois anos, andavam por aqui a fechar. Mas resultou." O empresário nas horas vagas, trabalhador a tempo inteiro na Santa Casa da Misericórdia de Mourão, diz notar um aumento constante de turistas na zona ("50% portugueses, 50% estrangeiros"), mas acrescenta que muitos chegam por acidente.
O CÉU 
As estrelas, quando nascem, não são para todos. Este canto do Alentejo tem mais direitos cósmicos os concelhos de Alandroal, Barrancos, Moura, Mourão, Portel e Reguengos de Monsaraz foram agraciados com noites particularmente estreladas. 
E por isso criaram, em conjunto, a Reserva Dark Sky Alqueva, uma área de três mil quilómetros quadrados reconhecida em 2011 pela UNESCO como a primeira Starlight Tourism Destination do mundo
"É um dos melhores sítios da Europa para apreciar o céu noturno", garante Miguel Claro, astrofotógrafo oficial da reserva. "Há aqui uma média de 286 noites sem nuvens [por ano], um clima seco e estamos longe de grandes cidades, cheias de poluição luminosa. 
Para o turista, é esplêndido." Não pudemos testar as palavras de Miguel apanhámos uma das 79 noites nubladas do Alqueva.  
O HOTEL 
Nas paredes, forquilhas, pás, serrotes, peneiras, freios de cavalo. Nos armários, garrafões forrados a palha, balanças agrícolas. 






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