I - O António Manuel Torcato ao lado do Dragão
Costumamos dizer, de uma forma assumida, embora talvez
socialmente pouco aceitável que “as pessoas sem vícios geralmente têm também
poucas virtudes demonstráveis”.
Entendemos, de uma forma simples, que tanto os polos
opostos como os semelhantes se atraem de uma maneira, por vezes, quase mágica e
misteriosa.
Assim como também já vem sendo tempo de “a escuridão
tenebrosa” de várias ruas do Alandroal começar a atrair novas e presidenciais
lâmpadas…para sairmos das trevas e deste nosso triste negrume local.
Por isso, aqui estamos a lembrar que, no Alandroal, o
António Manuel Torcato, com taberna no Largo Pêro Rodrigues, mesmo em frente da
Fonte do Botão, não podia existir «sem a luz do seu Dragão».
Assim como o Dragão jamais poderia ter existido sem a
voz amiga do seu dono, o A. M. Torcato.
A ligação existente entre estes dois seres tem uma
história cheia de encanto e de peripécias pelo que vale a pena aceitar a
sugestão (de uma amiga L.) de os transportar para o presente da nossa memória.
Ora bem, comecemos pelo A. M. Torcato da família dos
Antunes Lapa Coelho aos quais ainda está, por exemplo, ligado o Manuel Augusto
cantador de fados vindo de longe e dos trópicos africanos distantes.
O taberneiro A. M. Torcato foi um alandroalense e homem do seu tempo com uma
vida que se enquadrou na existência própria do Alandroal nos seus melhores,
auto suficientes e produtivos tempos agrícolas.
Dinâmico produzia o vinho que vendia, situando-se
claramente no campo dos taberneiros empreendedores e trabalhadores que a nossa
Vila, por tradição, sempre teve. Basta lembrar também as vinhos e vindimas do
Zé Canhoto ou do Eduardo.
Possuía além disso uma vasta experiência «da arte de
fazer bom vinho» e de o ir revendendo para outras tabernas. Dispunha de um
capital e prestígio no meio que o levavam a ser respeitado, digno de
consideração e confiança dos seus pares.
A sua taberna chegou a ser das mais movimentadas do
Alandroal e a ter mais de um empregado ao serviço da sua numerosa clientela.
Morava na Praça mas fazia a sua vida na parte de baixo da Vila.
Sendo um taberneiro produtor, tornou-se o mestre
marcante e acompanhante de várias gerações de alandroalenses que lhe
experimentavam o sabor e estreavam a qualidade das suas excelentes produções
anuais.
Soube como prestigiar a sua função social de
armazenista pelo que não temos a ideia da sua taberna ser um local de desacatos
ou até de grandes ou demoradas carraspanas. Era um lugar de abrigo, e
especialmente de encontros entre amigos fiéis a certos rituais diários.
As pielas por ali piavam baixinho. Eram, se assim
podemos expressar-nos, sobretudo diversas “formas cidadãs” de conviver e de se
beberem uns bons copos nas circunstâncias históricas e limites sociais do seu
tempo.
A taberna era asseada, e o seu dono era muito ciente
daquilo que aviava pelo que, muitos de nós, víamos no A. M. Torcato, uma
linhagem de tabernas e de taberneiros com vocação e vontade no desempenho competente das suas funções.
Associado a este papel e a esta imagem estava (e
esteve sempre) o Dragão. Um cão mítico que se tornou, hoje, no que então já
era: um mito. O nada que é tudo!
II - O Dragão ao lado do António Manuel Torcato
Era um belo cão sempre pronto e ao dispor do seu dono.
Parece-nos, assim como há-de parecer a muitos alandroalenses que ainda agora
estamos a vê-lo, diariamente, cumprindo a sua nobre missão de levar à mesma
hora, o almoço ao dono por ordem da sua amigável dona.
O Dragão era mesmo assim: um cão deveras inteligente e
bastante bem educado. Muito bom cão, tinha uma pelagem preta e a herança
genética de um velho perdigueiro.
Orelhudo e com um porte físico assinalável, não era
cão de ladrar muito ou muito alto. Assim como não era de correrias. Nem
demasiado brincalhão. Manso no olhar e cumpridor lá isso era; brigão ou
exibicionista nunca o foi.
Sendo necessário também subia a Praça e ia ao talho do
Fitas buscar as encomendas de carne. Era um cão que podia até ter calhado à
natureza ser gente.
Impunha-se e dava-se facilmente ao respeito. De manhã,
dormia o que tinha de dormir no lajedo e depois, à hora de levar o almoço,
atento e calmo lá ia ele caminhando lentamente pelo Caminho da Fonte, descendo
a seguir a Rua D. Nuno Álvares Pereira (onde eu morava) até entregar o almoço
no balcão do dono.
Esta “cena de antologia” e este caminhar seguro e
pausado do Dragão com o cesto do almoço, entre dentes, até descer os três
degraus da taberna e entregar a refeição completa ao seu dono, julgo eu, que
deve permanecer na memória da maioria dos alandroalenses.
Assim como poderia ter sido vista e encenada pelo
olhar narrativo de Manoel de Oliveira ou de um Fellini. Era um cão com um modo
de ser e trato universal. Sociável, sereno (e filmável) em qualquer parte do
mundo.
Era «uma coisa do outro mundo», vê-lo por vezes
rodeado de outros cães à espera de uma distracção sua, e ele, o Dragão, senhor
inteiro do seu papel pousar o cesto do almoço e, numa atitude de respeitável e
desafiante autoridade, dizer aos outros cães e, por vezes, a certos pares de
gatos esfomeados :
“cheira bem, mas façam o favor de não me tocar
nisto…antes que eu perca a cabeça e vos
dê um ensinadela e ensaio de cacetada”. Tenho como sabem uma missão intocável,
corpo forte e fiéis argumentos para fazer isso mesmo!
E assim foi o Dragão cumprindo o seu papel, ao sol e à
chuva, até que um dia já velhote acabou por morrer da sua própria idade e
longevidade. O seu passeio da fama estava, porém, cumprido.
Dito assim, feita esta (re)apresentação de um cão
sóbrio e exemplar, assinalados os seus serviços, a sua postura, a sua
fidelidade, os seus comportamentos, digam-me lá se deve haver ou não, da nossa
parte, uma ponta muito forte de emoção ao recordar mais este episódio da «Vila
com vida» que era e já foi o Alandroal.
E já que
estamos em tempo de Primavera, perguntemos, por mais esta vez, ao taberneiro A.
M. Torcato (ou agora aos seus familiares, Rita e Tomásia) se um Dragão assim,
não merece esta “inspirada” lembrança?
E que, de caminho, se tornem a reavivar partes deste
nosso imaginário, as ruas e outros espaços locais de convivência social que o
Dragão viveu, frequentou e foi, à sua maneira, procurando humanizar.
Eram afinal estes os seus “Oráculos da Vila” e de quem
já conhecia bem o palavreado habitual da tabuada local. De cor e salteado.
Melhores saudações
António Neves
Berbem
(21/4/2015)
3 comentários:
Gostava de saber quando é que morreu esse belo cão. Em 1961 (tinha eu 13 anos), quando saí do Alandroal, já ele tinha uma idade razoável, diziam que tinha mais de 19 anos. Manso com todos, mas impunha respeito se alguém fizesse o gesto errado. Parabéns Berbém pelo excelente texto. MSubtil
OBS.
Caro M. Subtil
Aditamento sobre o texto do Dragão
Tentei, de facto, confirmar em diversas fontes "o ano da morte do Dragão" sem todavia o conseguir. Mea culpa.
Resta-nos ficar com a consolação substantiva de que o Dragão não sendo dado a grandes elegâncias (era efectivamente um bocadinho baixote e para o patudo) foi sempre um soberano-rei bastante admirado e desejado no reino das cadelas alandroalenses. Umas amavam-no. Outras não o largavam.
Pelo que, e por isso mesmo, alguma boa semente e descendência deve ter deixado ficar entre nós.
Continuaremos a averiguar. E se tivermos boas notícias, o Al tejo, por certo, nos irá dar conta,em primeira página, deste e de outros aditamentos.
É sempre tempo de manter o mesmo apreço de sempre pelo Dragão da nossa juventude. Como bem o assinalaste.
Ainda bem que assim é!
Os verdadeiros sentimentos são intemporais.
Abraço
ANB
Caro A.B
Obrigada pelo belo texto com que presenteaste os leitores do Altejo. Lembro perfeitamente o "dragão" e o seu dono também.
Este reavivar das nossas memórias com os episódios pitorescos da nossa juventude ,acredito que um dia nos poderá fazer falta em algum momento das nossas vidas menos bom..sempre teremos um sitio agradável como alternativa.
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