segunda-feira, 20 de abril de 2015

ORELHUDOS DO CARAÇAS - Uma rubrica do A.N.B.


I - O António Manuel Torcato ao lado do Dragão
Costumamos dizer, de uma forma assumida, embora talvez socialmente pouco aceitável que “as pessoas sem vícios geralmente têm também poucas virtudes demonstráveis”.
Entendemos, de uma forma simples, que tanto os polos opostos como os semelhantes se atraem de uma maneira, por vezes, quase mágica e misteriosa.
Assim como também já vem sendo tempo de “a escuridão tenebrosa” de várias ruas do Alandroal começar a atrair novas e presidenciais lâmpadas…para sairmos das trevas e deste nosso triste negrume local.
Por isso, aqui estamos a lembrar que, no Alandroal, o António Manuel Torcato, com taberna no Largo Pêro Rodrigues, mesmo em frente da Fonte do Botão, não podia existir «sem a luz do seu Dragão».
Assim como o Dragão jamais poderia ter existido sem a voz amiga do seu dono, o A. M. Torcato.
A ligação existente entre estes dois seres tem uma história cheia de encanto e de peripécias pelo que vale a pena aceitar a sugestão (de uma amiga L.) de os transportar para o presente da nossa memória.
Ora bem, comecemos pelo A. M. Torcato da família dos Antunes Lapa Coelho aos quais ainda está, por exemplo, ligado o Manuel Augusto cantador de fados vindo de longe e dos trópicos africanos distantes.
O taberneiro A. M. Torcato foi  um alandroalense e homem do seu tempo com uma vida que se enquadrou na existência própria do Alandroal nos seus melhores, auto suficientes e produtivos tempos agrícolas.
Dinâmico produzia o vinho que vendia, situando-se claramente no campo dos taberneiros empreendedores e trabalhadores que a nossa Vila, por tradição, sempre teve. Basta lembrar também as vinhos e vindimas do Zé Canhoto ou do Eduardo.
Possuía além disso uma vasta experiência «da arte de fazer bom vinho» e de o ir revendendo para outras tabernas. Dispunha de um capital e prestígio no meio que o levavam a ser respeitado, digno de consideração  e confiança dos seus pares.
A sua taberna chegou a ser das mais movimentadas do Alandroal e a ter mais de um empregado ao serviço da sua numerosa clientela. Morava na Praça mas fazia a sua vida na parte de baixo da Vila.  
Sendo um taberneiro produtor, tornou-se o mestre marcante e acompanhante de várias gerações de alandroalenses que lhe experimentavam o sabor e estreavam a qualidade das suas excelentes produções anuais.
Soube como prestigiar a sua função social de armazenista pelo que não temos a ideia da sua taberna ser um local de desacatos ou até de grandes ou demoradas carraspanas. Era um lugar de abrigo, e especialmente de encontros entre amigos fiéis a certos rituais diários. 
As pielas por ali piavam baixinho. Eram, se assim podemos expressar-nos, sobretudo diversas “formas cidadãs” de conviver e de se beberem uns bons copos nas circunstâncias históricas e limites sociais do seu tempo.
A taberna era asseada, e o seu dono era muito ciente daquilo que aviava pelo que, muitos de nós, víamos no A. M. Torcato, uma linhagem de tabernas e de taberneiros com vocação e vontade no desempenho  competente das suas funções.
Associado a este papel e a esta imagem estava (e esteve sempre) o Dragão. Um cão mítico que se tornou, hoje, no que então já era: um mito. O nada que é tudo!

II - O Dragão ao lado do António Manuel Torcato
Era um belo cão sempre pronto e ao dispor do seu dono. Parece-nos, assim como há-de parecer a muitos alandroalenses que ainda agora estamos a vê-lo, diariamente, cumprindo a sua nobre missão de levar à mesma hora, o almoço ao dono por ordem da sua amigável dona.
O Dragão era mesmo assim: um cão deveras inteligente e bastante bem educado. Muito bom cão, tinha uma pelagem preta e a herança genética de um velho perdigueiro.
Orelhudo e com um porte físico assinalável, não era cão de ladrar muito ou muito alto. Assim como não era de correrias. Nem demasiado brincalhão. Manso no olhar e cumpridor lá isso era; brigão ou exibicionista nunca o foi.
Sendo necessário também subia a Praça e ia ao talho do Fitas buscar as encomendas de carne. Era um cão que podia até ter calhado à natureza ser gente.
Impunha-se e dava-se facilmente ao respeito. De manhã, dormia o que tinha de dormir no lajedo e depois, à hora de levar o almoço, atento e calmo lá ia ele caminhando lentamente pelo Caminho da Fonte, descendo a seguir a Rua D. Nuno Álvares Pereira (onde eu morava) até entregar o almoço no balcão do dono.  
Esta “cena de antologia” e este caminhar seguro e pausado do Dragão com o cesto do almoço, entre dentes, até descer os três degraus da taberna e entregar a refeição completa ao seu dono, julgo eu, que deve permanecer na memória da maioria dos alandroalenses.
Assim como poderia ter sido vista e encenada pelo olhar narrativo de Manoel de Oliveira ou de um Fellini. Era um cão com um modo de ser e trato universal. Sociável, sereno (e filmável) em qualquer parte do mundo.
Era «uma coisa do outro mundo», vê-lo por vezes rodeado de outros cães à espera de uma distracção sua, e ele, o Dragão, senhor inteiro do seu papel pousar o cesto do almoço e, numa atitude de respeitável e desafiante autoridade, dizer aos outros cães e, por vezes, a certos pares de gatos esfomeados :
“cheira bem, mas façam o favor de não me tocar nisto…antes  que eu perca a cabeça e vos dê um ensinadela e ensaio de cacetada”. Tenho como sabem uma missão intocável, corpo forte e fiéis argumentos para fazer isso mesmo!   
E assim foi o Dragão cumprindo o seu papel, ao sol e à chuva, até que um dia já velhote acabou por morrer da sua própria idade e longevidade. O seu passeio da fama estava, porém, cumprido.
Dito assim, feita esta (re)apresentação de um cão sóbrio e exemplar, assinalados os seus serviços, a sua postura, a sua fidelidade, os seus comportamentos, digam-me lá se deve haver ou não, da nossa parte, uma ponta muito forte de emoção ao recordar mais este episódio da «Vila com vida» que era e já foi o Alandroal.  
 E já que estamos em tempo de Primavera, perguntemos, por mais esta vez, ao taberneiro A. M. Torcato (ou agora aos seus familiares, Rita e Tomásia) se um Dragão assim, não merece esta “inspirada” lembrança?
E que, de caminho, se tornem a reavivar partes deste nosso imaginário, as ruas e outros espaços locais de convivência social que o Dragão viveu, frequentou e foi, à sua maneira, procurando humanizar.
Eram afinal estes os seus “Oráculos da Vila” e de quem já conhecia bem o palavreado habitual da tabuada local. De cor e salteado.
Melhores saudações
  António Neves Berbem
    (21/4/2015)


3 comentários:

Anónimo disse...

Gostava de saber quando é que morreu esse belo cão. Em 1961 (tinha eu 13 anos), quando saí do Alandroal, já ele tinha uma idade razoável, diziam que tinha mais de 19 anos. Manso com todos, mas impunha respeito se alguém fizesse o gesto errado. Parabéns Berbém pelo excelente texto. MSubtil

Anónimo disse...



OBS.

Caro M. Subtil

Aditamento sobre o texto do Dragão

Tentei, de facto, confirmar em diversas fontes "o ano da morte do Dragão" sem todavia o conseguir. Mea culpa.

Resta-nos ficar com a consolação substantiva de que o Dragão não sendo dado a grandes elegâncias (era efectivamente um bocadinho baixote e para o patudo) foi sempre um soberano-rei bastante admirado e desejado no reino das cadelas alandroalenses. Umas amavam-no. Outras não o largavam.

Pelo que, e por isso mesmo, alguma boa semente e descendência deve ter deixado ficar entre nós.

Continuaremos a averiguar. E se tivermos boas notícias, o Al tejo, por certo, nos irá dar conta,em primeira página, deste e de outros aditamentos.

É sempre tempo de manter o mesmo apreço de sempre pelo Dragão da nossa juventude. Como bem o assinalaste.

Ainda bem que assim é!
Os verdadeiros sentimentos são intemporais.

Abraço

ANB

L. Mira disse...

Caro A.B
Obrigada pelo belo texto com que presenteaste os leitores do Altejo. Lembro perfeitamente o "dragão" e o seu dono também.
Este reavivar das nossas memórias com os episódios pitorescos da nossa juventude ,acredito que um dia nos poderá fazer falta em algum momento das nossas vidas menos bom..sempre teremos um sitio agradável como alternativa.