segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

UMA HISTÓRIA DO NUNO CACILHAS – IN “MESA POSTA - OFICINAS DO CONVENTO”

 Corre, corre Jaquim!
 Sentei-me num banco do Largo das Palmeiras. Era tarde e já não estava ninguém na rua. Apenas a luz que permanecia acesa numa janela podia assegurar-me de que não estava completamente sozinho. Sobre as pernas tinha umas folhas de papel, sentia o frio da noite congelar-me os ossos da mão descoberta e mal segurava a caneta entre os dedos. A solidão durou pouco tempo. Uma manada de touros começou a correr desenfreadamente na minha direcção. Nesse preciso momento, um homem sentou-se comigo no mesmo banco. Começou por dizer-me que o seu nome era Jaquim do Touro. Depois explicou-me que não era bem ele que estava ali sentado comigo e disse-me que eu deveria espreitar com atenção para o meio dos touros e que seria aí que eu o iria encontrar. Vi-o, juro que o vi. E então pedi-lhe que me contasse a sua história.

Se os mortos são sempre boa gente, os da quinta geração são de todas a melhor estirpe. É preciso recuarmos ao tempo do avô do avô do avô do avô do seu avô para nos situarmos no contexto em que esta história teve lugar. Não sei porque raios insiste em chamar a este local o Largo das Palmeiras, Terreiro do Corro, é como é conhecido neste meu tempo. A razão porque estou ali no meio dos touros é uma longa história que procurarei resumir aqui, sem me perder em grandes descrições e sem palavreado mui raro, como me sugere. O meu nome já o sabe, assim me chamam porque sou o Jaquim e porque fui eu quem criou o maior touro que aqui se encontra. Aquele ali, o Maior. Poderia pensar que a vaca sua mãe havia morrido de alguma doença, mas que fique claro que fui eu que a matei por ordens do patrão. E às suas ordens cozinhei-a num espeto bem grande e servi-a para o banquete de aniversário da pequena Mariazinha. A filha do patrão fazia apenas dez anos e eu não tinha mais que treze anos nessa altura. O aniversário era mais uma festa dos pais do que da filha pois, excepto ela, eu era a única criança que ali se encontrava. Talvez por isso, nesse dia, os nossos olhos só descansavam quando se encontravam. E tanto nos fitámos que o patrão mandou o meu pai repreender-me severamente, repreendendo também a sua filha. Passaram oito anos e apenas olhares cada vez mais intensos trocávamos, nem um simples bom dia nos era permitido. O Maior foi crescendo ouvindo os lamentos do meu pobre coração. Contei-lhe que um dia iria precisar da sua ajuda para conquistar a Mariazinha e dei-lhe todos os pormenores, repetia-lhos incessantemente para que não se esquecesse de nenhum quando chegasse esse dia. É hoje o dia. Nenhum homem ou touro irá fazer-me parar enquanto eu correr ao lado do Maior. Quando os touros se encostarem à sua janela, vou conseguir finalmente entregar a carta dos meus votos à Mariazinha. Tão entusiasmado e confiante estava que consegui entregar-lha em mãos, depois de subir à varanda nas costas do Maior, conforme planeado. Já na varanda, reparei que o Maior, como se já tivesse cumprido a sua parte do plano, seguiu para longe de mim. A Mariazinha recusou receber a carta, a razão para tal ainda desconheço, e o patrão pôs-se aos gritos. Cornos por cornos, atirei-me da varanda e a queda foi tão grande que parti uma perna. Ali estava eu à mercê dos touros que já me juravam pela pele. Começaram a aproximar-se, ainda houve quem me quisesse salvar mas o patrão gritou da varanda que me deixassem ali ficar. Já sentia o hálito dos bois entrar-me pelas narinas e percebi que o meu fim chegava tão rápido quanto eles. Mas o Maior regressou e afastou-os um a um, impedindo que maior desgraça ocorresse. Descontente com o desenrolar da história, o patrão mandou que me prendessem. Dois militares tentaram aproximar-se para cumprir as respectivas ordens, mas não o suficiente para o conseguir. O Maior decidiu não me abandonar e, de novo, com grande zelo, montava a guarda. Todos os outros touros já tinham sido encaminhados para o Rossio menos o Maior. Bem que lhe espetavam pontas afiadas no dorso, o sangue escorria-lhe a fio, eu sentia a sua dor mais do que a da minha própria perna, mas ele permanecia imóvel a meu lado. O patrão ordenou então que me levantasse e que encaminhasse o touro para a Praça do Rossio, dizendo que me perdoaria todo aquele atrevimento. Eu sabia que se me levantasse levaria comigo o Maior para morte certa, mas da morte já não o conseguiria salvar. Na altura, era isso que se fazia com os touros, agora, no seu futuro, não sei, talvez ainda me conte. Eu era culpado. Fui eu que coloquei o Maior em perigo com o meu imaturo plano inicial. Perante a morte, refazemos a percepção da vida. Eu sabia que agora pouco ou nada poderia fazer, nada remediaria a situação em que nos encontrávamos. Era enorme a dor que sentia quando espetavam uma e outra vez as lâminas afiadas no dorso negro daquele que me protegia. Eu apenas queria que tudo terminasse depressa. Levantei-me sobre uma perna, apoiei-me nos cornos do meu amigo e caminhámos juntos. Ouviam-se vozes, gritos, uns choravam outros riam. Deixei de ouvir as pessoas. Éramos dois a percorrer o mesmo caminho. Para mim, não haviam mais razões para continuar a viver entre os homens. Temia que nem a Mariazinha fosse a Mariazinha para quem eu escrevera a maldita carta. Entrámos no Rossio lado a lado, e decidi colocar-me entre o Maior e qualquer homem que viesse de capa e de espada na mão. Ele chegou e eu lancei-me com toda a minha raiva para cima dele. Sujei-lhe a roupa brilhante com o sangue do Maior e ordenei-lhe que se afastasse. Mas o grande toureiro ignorou os meus apelos e começou a tourear-me como se fosse eu a besta. O Maior investia contra a capa vermelha e errava sempre o alvo. Consegui dar-lhe dois murros bem assentes no focinho, mas a perna traiu-me e caí. O cobarde aproveitou a ocasião, colocou a capa no meu nariz e espetou a ponta da espada nas minhas costas, reservando-me uma morte lenta e dolorosa. O espectáculo foi sem espectáculo. O público não gostou. Naquele momento, pude sentir a compaixão da multidão. Já ninguém aplaudia, apenas apupos e assobios se ouviam ecoar, enquanto a Praça se ia esvaziando, tal como o sangue do meu corpo. Tentei erguer-me para ver melhor quem era a pessoa que vinha na minha direcção. Era a Mariazinha. Corria velozmente, gritava algo que eu mal conseguia entender mas creio que me perguntava pela carta, quando o Maior investiu. Deitou-a ao chão e cravou várias vezes os cornos agudos na sua tenra carne. Vi a sua vida a esvair-se-lhe pelos olhos, enquanto nos fitávamos uma última vez. E depois ouvi alguém gritar –corre, corre Jaquim!...
 10/201
Nuno Cacilhas


Sem comentários: