quarta-feira, 26 de novembro de 2014

AS LAVADEIRAS DO LUCIFÉCIT - Pelo Helder Salgado

(Continuação do dia anterior)

                                    AS LAVADEIRAS DO LUCeFÉCIT

 A MARIA FRANCISCA, A MISTERIOSA LAVADEIRA DO LUCEFÉCIT.
                                        
Poderia prolongar mais a história das lavadeiras que citei.
Das dificuldades que passaram para sobreviver e criar os filhos.
Naquele já longínquo tempo, em que, praticamente, só havia trabalho nas épocas sazonais, nas mondas, nas ceifas e na apanha da azeitona e, fora destas, para os contratados, os carreiros, as sementeiras e as debulhas.
A tia Lobinha, cujo agregado familiar de cinco pessoas tinha enormes dificuldades para governar a casa, fora daquelas épocas, assim, e muito embora a lavagem da roupa durasse apenas um dia para qualquer casa, elas arranjavam mais “patroas” chegando a levar roupa para lavar de duas ou três pessoas para fazer o dia de trabalho.
Embora revele as três lavadeiras sucedia de igual modo com as demais.
A Maria Joana debateu-se, quase sozinha, com a criação de um casal de filhos. Foi enorme o seu esforço, a sua abnegação, a sua vontade de vencer. Um enternecedor exemplo de mulher coragem.
O mesmo sucedeu á Isabel Veladas, cujo marido vitimado por uma forte dor durante a ceifa, veio morrer a casa deixando uma filha de berço.

E a Maria Francisca.
Nunca conheci esta lavadeira.
No meu despertar de menino, quando ainda mal saia de casa e para sair tinha que dizer aonde ia e a que hora voltava, comecei a ouvir falar nesta enigmática lavadeira.
Na minha assimilação de conhecimentos, no começo do meu despertar para o mundo, logo me apercebi que esta pessoa estava envolvida em mistério.
Dela se falava em surdina e, este cochichar despertava a minha curiosidade de menino ávido de aprendizagem dos assuntos dos adultos e dos seus mistérios, que eu tentava e queria desvendar para os conhecer. 
Dos falatórios alcancei ambiguidades, conforme a visão de cada um ou até das conveniências.
Uns eram abonatórios e tolerantes, outros em maior número, difamatórios e desprestigiantes.
As más-línguas, aqueles que, gradualmente se vão esquecendo e ignorando os seus atos e os seus problemas, e, gastam o seu tempo difamando e maldizendo, tinham na rapariga, um campo privilegiado de livre imaginação destruidora, pois da moça nada se sabia de concreto, campo acrescido pelo boato da beleza e boniteza da mocita.
Por aquilo que me ia chegando aos ouvidos e no meu começo de sonhador do sexo oposto, não fugindo á regra idealizei a rapariga.
Vi nela uns olhos cristalinos, que brilhavam num rosto cor de neve que, certamente ela protegia dos abrasadores sóis alentejanos.
Ainda tenho, na minha memória, o som da sua suave e melodiosa voz, que aliada aos seus delicados gestos, admirava e prendia qualquer interlocutor.
O seu escultural e curvilíneo corpo apresentava os seios hirtos, que na linguagem dos falantes, diziam uns que eram virgens, outros não.  
Os homens cobiçavam-no e as mulheres invejavam-no.
Na minha pequena experiência de vida, comecei a acreditar que a existência da Maria Francisca,
fora uma criação imaginativa, tanto mais que ninguém sabia de onde tinha vindo a rapariga, nem a que famílias pertencia. 
Uns diziam que tinha chegado numa madrugada a Terena, outros em alta noite. O que todos afirmavam é que ela morara perto do Castelo e fora recolhida pela Casa do Rodo.
Esta ligação ao Castelo provocou conversas e ditos hilariantes. Uns diziam ser uma moura encantada e outros, uma criação do génio Aladino
Certo é que estas cogitações me agradavam pela sua envolvência misteriosa e ia alimentando o meu imaginário, confundindo-me, por vezes, com a realidade.

A Maria Francisca arranja trabalho

Ao fim de três dias de estadia em Terena, houve quem a visse caminhar para a Casa Neves, situada na baixa de Terena, junto a igreja de santo António, capela erigida pelas esmolas de fiéis, cuja família Neves se encarregava da sua manutenção.
No percurso passava pela varanda, onde desfrutava uma magnifica vista sobe a serra d’Ossa e a ribeira do Lucefécit e, segundo os antigos, a varanda tinha no interior do seu sopé, prisões.
No cimo da varanda situava-se a Casa Azevedo.
A rapariga assumiu a responsabilidade de ir lavar a roupa á ribeira, passa-la a ferro e auxiliar na cozinha, nessa altura com muito trabalho devido á feitura da comida para a criadagem, então numerosa devido aos muitos e diversos trabalhos agrícolas, aliás a única fonte de riqueza da Freguesia.
Com a féria podia contribuir para a amenização da sua estadia na sua casa de abrigo e de alcançar o seu objetivo de observadora e, na reflexão que fazia dos atos de maior ou menor importância passados na Vila, profetizava os acontecimentos vindouros de Terena.
Depressa se viu sabedora da rivalidade, ainda muito fresca na memória das pessoas, entre aquelas duas famílias, Neves e Azevedo, que culminou com um hediondo crime, a chacina, por queima de cento e tal porcos, na malhada dos Barros, junto ao ribeiro da Cruz e por ocasião da Festa dos Prazeres.
Houve quem afirmasse que a gordura corria até ao ribeiro daquele nome.
Aquela rivalidade advinha da luta política pela presidência da Junta de freguesia.
Terena conservava ainda algum esplendor que lhe restava da recente perda do Concelho.
Fruto do imaginário ou realidade, gente afirmava, que a moça se tornara devota de nossa senhora da Boa Nova e que desaparecera numa segunda feira de Prazeres, para não mais voltar.
Com efeito a madre superiora da Casa do Rodo, deu nesse dia, com um pedido escrito que dizia:-

Madre, tal como apareci em Terena, vou desaparecer.
O meu desaparecimento envolve o mistério, que consta neste embrulho, que peço, pela alma de todos os seus defuntos, o deite para a cisterna do Castelo”
O meu superior obrigado á instituição que me acolheu e acarinhou.

Ao acabar de ler o escrito a Madre Superiora, sóror Violante, ficou apavorada e fora de si, não descansando enquanto não cumprisse a missão ordenada pela Maria Francisca. Fê-la durante a calada da noite, certificando-se de que não fora vista e levou para a cova este segredo.

Helder Salgado

(amanhã: ultimo capitulo)

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