terça-feira, 25 de novembro de 2014

AS LAVADEIRAS DO LUCEFÉCIT - Por Helder Salgado

De novo o Helder volta ao nosso convívio com a sua escrita tão do agrado de todos aqueles que gostam de recordar os locais, hábitos, e gentes da sua terra natal: Terena.
Desta vez e com o título de “AS LAVADEIRAS DO LUCIFECIT” ,leva-nos a conhecer uma tarefa, que pela força das circunstancias, desapareceu como pratica frequente de todas aquelas que tinham o privilégio de ter um riacho, um ribeiro, um pego perto do local onde viviam.
Recordemos então a Ribeira do Lucifecit, e como antigamente se procedia para lavar a roupa.
Ao reviver personagens que exerceram tal profissão, o Helder termina esta narrativa abordando um tema que ainda hoje está envolto em mistério, e que desde sempre deixou marcas profundas nas gentes de Terena.
Não deixe de ler ao longo desta semana o que o Helder elaborou para prestar homenagem a pessoas que ficaram para sempre na memória do povo.
Chico Manuel



                                        AS LAVADEIRAS DO LUCeFÉCIT

Durante séculos a água da ribeira do Lucefécit foi aproveitada, com maior ou menor incidência, conforme as épocas e as necessidades dos tempos.
É aproveitada nas hortas, nos laranjais, nas searas de milho e girassol, nos meloais, culturas que requeriam terra forte e húmida.
As margens da ribeira apresentam, de Verão, um colorido diversificado que contrastam com o sequeiro da terra circundante.
 O Lucefécit atinge o seu esplendor com a farinação, a transformação de cereal em farinha.
Os seus moinhos substituíam os do Guadiana quando das enchentes deste rio.
Alcancei de um texto que me foi oferecido pelo senhor Carlos Cunha, um apaixonado pelo Lucefécit, que via Al Tejo (honra se faça ao F. Manuel) troquei alguns mails, vindo-o a conhecer, assim como a esposa, no Mosteiro dos Jerónimos, que na ribeira moeram dezoito moinhos registados e alguns clandestinos, muitos deles de duas mós, o que prova bem a importância da ribeira, que tendo cerca de trinta e quatro km, representava um moinho por cada km e oitocentos metros.
Não podia deixar de referenciar a pesca, não só como desporto ocasional mas também uma forma de arranjar algum dinheiro que rareava fora das épocas sazonais.
E, como eu gostava de ouvir o pregão anunciador da venda do peixe do rio, apanhado e vendido pelo saudoso pescador José Borrão, pelo tio Laurentino Manitas, que terminava com estas palavras - que lá se vende.

Dois dos maiores auxiliares de rega que conheci junto á ribeira foi a nora e a picota, esta conhecida também como cegonha

Para quem esqueceu o carinho que o liga á sua Terra Natal ou ao lugarejo onde nasceu esta crónica pouco ou nada lhe dirá, mas se tem alguma curiosidade em conhecer os usos e costumes de uma região, já lhe dirá algo. 

Este texto é direcionado para todos aqueles que longe, mesmo muito longe, nunca conseguiram cortar o cordão umbilical que os une á sua terra de berço.

A afetividade é o sentimento poderoso que faz mover as pessoas, procurando recordar e fazer recordar momentos das suas vivências, simples ou complicados, alegres ou tristes, mas que nos ficaram gravados para sempre na prateleira memorial das nossas recordações.

Á agua e á ribeira está associada uma das mais belas e vistosas tarefas que aqueles dois elementos nos poderiam legar.
Da lavagem da roupa guardei algumas recordações que vou partilhar convosco.


As lavadeiras.

Já vem de muito longe a minha vontade de escrever sobre as lavadeiras do Lucefécit, como mais longínquo está a minha recordação dessas mulheres que levantando-se de madrugada, partiam para a ribeira carregadas com a canastra, recetáculo feito de canas, cheias de roupa.
Para que a dureza das canas calcadas com o peso da roupa, não molesta-se a cabeça das lavadeiras, estas colocavam uma “rodilha” na cabeça e só depois é que carregavam as canastras.
O pego preferido situava-se acima das “passadeiras” no chamado porto da Boa Nova, por ficar perto da Santuário, cuja água corria quase todo o ano. Na sua borda colocavam lajes de razoável dimensão, que denominavam de “pedras”, anteriormente preparadas.
Por vezes havia alguma discussão porque uma ou outra lavadeira chegando mais cedo, colocava-se numa “pedra” que outra tinha preparado.
Roupa havia de difícil lavagem, entre elas estavam os cobertores, que para perderem a maior parte da água, para uma melhor e mais rápida enxuga eram exprimidos. Duas lavadeiras pegavam nas pontas desta peça de roupa e torciam-na até deitar quase toda a água nela embebida.
Era necessário um grande esforço, que compensava porque a secagem era mais rápida e quando da sua recolha a peça, por vezes, já estava enxuta.
Peças de roupa havia que de mal lavadas, anteriormente, encardiam. Nestas encontravam-se as camisas dos homens, normalmente, de cor branca, as fronhas e lençóis e em certos períodos do mês, as cuecas das mulheres.
E, para a lavagem destas peças era necessário fervê-las. Assim surgem as “barrelas”.
Aquela roupa era metida em recipientes de cobre com uma fornalha por baixo para o aquecimento da água, que se levava até à fervura e misturada com cinza branqueava a roupa.
Talvez tenha cometido uma imprudência, o não ter indagado o porquê da batida de alguma roupa, depois de bem ensaboada, na pedra. Racionando penso que a pancada da roupa, dada com alguma violência, exercia uma força centrifugadora e expelia mais depressa a sujidade.
Ignoro se estou certo ou não.
A roupa menos difícil de lavar depois de molhada, era ensaboada - em vila Viçosa houve uma fábrica de sabão: A Sofal - e esfregada na pedra, depois de enxaguada era posta a secar.
A roupa era estendida por cima dos alandros, das atabuas e dos vimes, cujo colorido transmitia ainda mais beleza á ribeira.
Recordo-me de várias lavadeiras e do seu regresso á Vila, em fila indiana, de passo compassado a acusar cansaço, que redobrava os esforços pelo peso dalguma roupa ainda húmida e dum final de dia de trabalho.
Embora me recorde de muitas lavadeiras, a Isabel Veladas, a Maria Joana, a tia Lobinha jamais se apagarão da minha memória.
A tia Lobinha era a mais idosa e a mais franzina. A canastra tinha metade da sua altura e para a descarregar tinha que ser auxiliada por outra pessoa.
O ato de lavar era praticado de joelhos que também assentavam em almofadas improvisadas com roupa velha.
Por vezes e, aqui, dependia da disposição da lavadeira aparecia o cante, que se estendia ao grupo.
As canções eram aquelas canções populares que se perpetuavam de geração, em geração.
Recordo-me de dois extratos de duas canções que, ainda muito pequeno gravei na memória -

Era o vinho meu bem era o vinho / era a coisa que eu mais adorava / só por ti, só por ti, só por ti /
só por ti o vinho deixava.

O outro pareceu-me que mais se adequava ao ato praticado pelas lavadeiras -

Não quero que vás á monda, nem á ribeira lavar, só quero que me acompanhes, ó meu lindo amor, no dia que eu me casar.
No dia em que eu me casar, ades ser minha madrinha, não quero que vás á monda, nem á ribeira á sozinha”.

Claro que passados tantos anos já perdi a certeza se eram assim os versos, mas para o caso não tem nenhuma importância, o que aqui quis ou tentei testemunhar foi o esforço e a abnegação das lavadeiras do Lucefécit, evidenciando, pela sua determinação e pela grande impressão que então me causaram aquelas três.

Não podia, nem esta pequena história ficaria completa senão vos contasse o que aqui e ali ouvi dizer.
No nosso despertar o que se fala em segredo ou baixinho é o que nos aguça a curiosidade.

Heder Salgado
(Continua amanhã)

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