terça-feira, 3 de julho de 2012

MEMÓRIAS CURTAS (Rubrica mensal do Professor Vitor Guita)


Junho fez reacender mais umas quantas memórias.
            Nas vésperas dos dias devotados aos santos populares, a vila iluminava-se com o clarão festivo das fogueiras. Quase não havia largo, rua nem travessa onde não se fizesse um lumaréu.
            A rapaziada passava o tempo num vaivém apressado, à cata de lenha e de pasto seco. Alguns pedinchavam, à porta das lojas, grades de madeira, barricas e caixotes velhos. Tudo o que desse para atear o lume e manter o fogo vivaz.
            Arranjava-se ainda tempo para enrolar um sem número de rifas coloridas e recortar pequenas bandeiras de papel, que serviam para ornamentar as ruas e os vasos de manjericos. Os mais crescidos, com a ajuda de músicos e poetas da terra, participavam nas marchas populares.
            Ao cair da tarde, as raparigas solteiras aguardavam, ansiosas, que os popularíssimos Chico e o mano Zé chegassem carregados de alcachofras de tons violáceos, que elas, à noite, chamuscavam nas fogueiras. Se as plantas voltassem a florir no dia seguinte, era sinal de amor correspondido.
            Mas a fezada não ficava por aqui. Na véspera de Santo António, algumas atiravam cravos vermelhos para a rua, convictas de que o nome do primeiro que os apanhasse seria o do futuro marido. A necessidade sempre foi mestra de engenho!
            Mal apanhavam as fogueiras acesas, os rapazolas corriam a vila inteira e exibiam-se diante das raparigas, saltando temerariamente por cima e pelo meio de gigantescas labaredas.
            Para uma parte da estudantada, a grande dificuldade residia em conciliar os livros com a festa. Junho era (ainda é), sinónimo de exames, de angústias e canseiras, não só por ser chegada a hora de pôr os conhecimentos à prova, mas por tudo o que gravitava em torno das provas finais: corte obrigatório do cabelo; a tortura do casaco quente; o pescoço estrangulado pela camisa e pelo nó torto da gravata; os pés mordidos pelos sapatos; o temor de deixar esquecidos em casa o compasso, a caneta, a cédula pessoal e mais um rol de pequenas coisas que podiam ditar a destino de um jovem aluno.
            Se os exames, como era habitual, tinham lugar em Évora, havia que suportar uns tórridos trinta e tal graus, que davam para assar dentro dos carros, amolecer o estojo de plástico e derreter o alcatrão do caminho. Já dentro do antigo liceu, na aparente fresquidão das salas azulejadas, é que era suar as estopinhas!
            Durante a viagem entre Montemor e Évora, ocupávamos o tempo a construir mnemónicas para fixar fórmulas, nomes e datas. Para desanuviar, divertíamo-nos a seguir o movimento das azinheiras e dos sobreiros, que pareciam vir em sentido contrário. O nosso olhar sobre o campo era, nesse tempo, despreocupado, a contrastar com a vida dura das ceifeiras e dos ceifeiros que íamos avistando de um lado e de outro da estrada, meio submersos por mares de trigo.
            Há poucos dias, estivemos à conversa numa roda de amigos. Todos conheceram, por dentro e por fora, a lida do campo. Muitos ainda andaram a ceifar a poder de braço. Num exercício colectivo de memória, revisitámos a ancestralidade dos processos e muitas outras facetas desse universo tão alentejano, que era o da “aceifa”.           
            Tradicionalmente, Maio era a altura em que se começava a cortar a cevada. Depois, no mês de São João, vinha a ceifa do trigo, da aveia, do centeio. Consoante a área e o número de folhas, assim era a quantidade do pessoal a contratar. As grandes casas agrícolas chegavam a recrutar ranchos com dezenas de camponeses. O preço da jorna era, muitas vezes, objecto de acesa disputa.

            Para controlar o trabalho, cada folha era subdividida em tornas. Em cada uma delas, a ceifa era feita por cerca de uma dezena de homens e mulheres, incluindo o moço de torna, que, a troco de mais uns tostões, “empurrava” os outros companheiros. Não se podia “perder a bola”, quer dizer, ficar para trás.
            Regra geral, o pessoal era opinioso no que fazia. Toda a gente sabia que os lavradores queriam o restolho rasteiro, a cerca de um palmo do chão. Sempre dava mais alguma palha. Se alguém não dobrasse a espinha e cortasse o trigo alto, tinha de se haver com a aspereza do manajeiro: “Vê lá se cortas os joelhos?!”
            Tudo obedecia a regras. Aos homens pertencia ceifar três margens e às mulheres apenas duas. Recebiam também em proporção. Dois terços da jorna ou nem isso era o que cabia ao chamado sexo fraco. Trabalhava-se muito; ganhava-se pouco.

            Depois de ceifado o pão, o atar os molhos e o enroleirar eram tarefas predominantemente masculinas. No fim, fazia-se o carrego para as eiras em carros de mulas ou carretas de bois.
            Apesar de todas as diferenças, havia mulheres que pediam meças a trabalhar de igual para igual, ao lado dos homens. Muitos daqueles com quem falámos referiram repetidamente o nome de uma dessas mulheres. Chamava-se Maria Santiago ou Santiágua, na versão mais popular. Era um poço de vida e de energia!
            Durante longos anos, trabalhou-se do romper ao pôr-do-sol. Se a seara ficava distante, era preciso contar com uma hora, às vezes mais, para palmilhar umas quantas léguas. Abalava-se de noite e chegava-se de noite a casa. Em certos casos, viam-se os filhos ao Domingo. Campos fora, a mor das vezes cantando, lá iam ceifeiras e ceifeiros com os canudos de cana enfiados nas curvilíneas foices. Os jornaleiros levavam consigo os parcos ingredientes para as refeições diárias. Alguns transportavam ao ombro pequenas latas ou chavelhos com sal e azeitonas. Tudo chocalhava, ao longo da caminhada, como se fosse uma orquestra de percussão.
            No local de trabalho, tarefa importante era a da cozinheira ou, muito raramente, do cozinheiro. O lume era aceso logo pela manhã e só se espalhava à medida das necessidades. Tudo dependia do número de panelas de barro que era preciso enfileirar ao longo do braseiro. Ao pessoal da cozinha competia, entre outras coisas, vigiar as panelas e deitar mais um pouco de água, ainda assim não fosse a comida secar.
            Almoçava-se cedo, por volta das nove, e jantava-se já bem para lá do meio-dia. Mais para o fim da tarde, à falta de outra coisa, merendava-se o resto do toucinho ou do chouriço que se tinha feito sobrar.
            A seguir ao jantar, o pessoal tinha direito a uma sesta. Esta regalia era concedida logo após a Feira de Maio e durava até às vésperas da Feira de Setembro. A maioria escolhia a sombra de uma árvore, geralmente um sobreiro ou uma azinheira. Nos descampados, muitos ceifeiros, vencidos pelo cansaço, faziam do restolho o seu melhor colchão. As mulheres aproveitavam, com alguma frequência, a pausa no trabalho para dar uns pontos ou fazer uma renda.
            Em matéria de vestimenta, se os homens se distinguiam pelo lenço que traziam ao pescoço ou a proteger a nuca, o traço distintivo das mulheres era, além do lenço e do chapéu, a blusa de chita, os manguitos e o avental, as meias e os sapatos grossos, as saias transformadas em calças, que as ceifeiras prendiam com alfinetes. Debaixo de um sol abrasador, os rostos tingiam-se de suor misturado com a tinta preta dos chapéus. Se calhava a chover, as camponesas cobriam a cabeça e as costas com uma saia-capa de estamenha.
            Uma das personagens imprescindíveis em todo este cenário era a aguadeira ou o aguadeiro.

Sempre atentos, eram eles que transportavam o coxo e o cântaro de barro cuja água matava a sede a toda aquela gente. As aguadeiras tinham vaidade na maneira como transportavam os cântaros à cabeça. Muitas faziam-no sem ter segurar e dispensavam sogra.
            Além do pessoal aqui da região, os grandes lavradores costumavam contratar para a ceifa os chamados “ratos” ou “ratinhos”, gente que vinha do norte, especialmente da região das Beiras. Faziam, regra geral, contratos de trinta dias. Víamo-los chegar, só homens, em camionetas da carreira, atafulhadas de colchões, sacos e de toda a tralha necessária para sobreviver durante um mês. Se necessário, trabalhavam de noite e de dia. Gastavam o menos possível para amealhar alguns vinténs. Era como se fossem emigrantes dentro do seu próprio país. Viam-se pouco nas vendas e nas tabernas. Dificilmente se sabia quanto lhes pagavam. Consta que vinham ganhar ainda menos do que os de cá.
            Bem! Está quase na hora da abalada. Ainda fica um ror de coisas por dizer. Apetece-nos terminar com uns belíssimos versos de Fernando Pessoa:

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta e ceifa, e a sua voz cheia
De alegre e anónima viuvez
….
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida
E canta como se tivesse
Mais razões p’ra cantar que a vida.

            Até à volta
Victor Guita

2 comentários:

francisco tátá disse...

Era duro. Custava a suportar, Ganhava-se mal: era-se explorado. Na altura o grandes latifundiários exploravam os pobres.
E agora?
Podem não ser os latifundiários, mas outros que todos nós conhecemos que continuam a explorar.
Pelo menos na altura dava gosto ver os campos. as searas, o Alentejo produtivo... e agora? um deserto, campos secos, um Alqueva que apenas beneficia no capitulo agrícola os espanhóis.
Triste sina nascer pobre....

Anónimo disse...

Belo texto. Sabe bem ler coisas como esta e recordar.
Obrigado